A Linguagem dos Pássaros


 

Existe, sob a capa de caos em que nos movemos nesta dimensão onde nos reconhecemos, uma ordem profunda como um puzzle em que as peças todas encaixam, sendo que por vezes assistimos, com espanto, ao mistério de duas peças a encasar e isso já tomamos como milagre que não é, mas apenas a realidade no seu mais sofisticado mecanismo.

 

Há quem lhe chame emaranhamento quântico, a partir das descobertas científicas que já nem são deste século, mas do século passado, por cientistas reconhecidos pelo Nobel, mas escandalosamente ignorados pelos diversos lobbys aos quais não interessa que as coisas sejam como são.

Se estivermos atentos, conseguimos ser cientistas das nossas próprias vidas, da nossa própria realidade. Todos temos histórias para contar que persistimos em ignorar, em relativizar ou minimizar.

Poderia encher páginas de observação de fenómenos, como os observadores de pássaros, e é mesmo por um pássaro que começo, pois num dia do passado Fevereiro, na casa de Lisboa, entrou-me um melro pela cozinha, o que me espantou, pois para passar pela porta teve de enviesar e baixar muito o voo. Esvoaçou, tomou conhecimento do limitado espaço, para ele, que habita os céus, e saiu.

Passado pouco tempo voltou a entrar, espantosamente, pois nem o ladrar dos cães durante a sua primeira incursão o dissuadira. Desta vez demorou-se mais, experimentou o pouso e escolheu, para se demorar, uma das prateleiras altas pousando ao lado de uma ave em louça ali exposta. Observou, rodou o pescoço em todo o seu redor e ali permaneceu por uns minutos como se habitasse a casa. Dali saiu para pousar noutra prateleira alta em frente à porta por onde entrara e prolongou um pouco o estar junto das caixas onde está guardado o presépio. Quando entendeu, baixou o voo para sair elegantemente pela mesma porta em frente e elevou-se nos céus.

Três dias depois, mas no Porto, deparei-me, com espanto, pois ainda me consigo espantar, com uma loja Bengali cujo nome, ostentado na frontaria, era inesperadamente a data em que ocorrera o sucedido com o melro: 21 de Fevereiro! Espírito céptico como sou, fui informar-me acerca da data e para além de ter recordado tratar-se do Dia Mundial da Língua Materna, fiquei a saber a causa da escolha deste dia 21 de Fevereiro. Trata-se do aniversário de um importante e trágico acontecimento em que o povo do Bangladesh, que na altura era o Paquistão Oriental, se bateu até à morte para que a sua língua, o bengali, fosse reconhecida.

O que aconteceu então, foi que tendo o urdu sido declarado pelo governo do Paquistão como a língua nacional, e sendo o bengali falado a língua utilizada pela maioria dos habitantes do actual Bangladesh então Paquistão Oriental, e do Paquistão Ocidental, levantou-se um aceso protesto, pois a maioria tinha como língua materna o bengali. Proibidas todas as manifestações públicas, os estudantes da Universidade de Dhaka e a população não acataram as ordens, e em 21 de fevereiro de 1952, as autoridades dispararam. Para além dos feridos, cinco estudantes morreram num raro acto de heroísmo em defesa da língua materna.

Este dia é comemorado como feriado nacional no Bangladesh, e a 17 de novembro de 1999, a Assembleia Geral da UNESCO decidiu, unanimemente, declarar o 21 de fevereiro como “Dia Internacional da Língua Materna em todo o mundo, para comemorar os mártires que sacrificaram suas vidas neste mesmo dia, em 1952″.
Acontece que o dia 21 de Fevereiro, dia da visita do melro, e dia Internacional da Língua Materna em memória dos seus mártires, indicação que me foi dada pelo nome de uma loja na rua de Santo Ildefonso no Porto, é também efeméride da partida de um menino da minha família.

Não sei que mensagem quis dar-me o melro na sua linguagem de pássaro, mas para mim, o dia da morte do Menino e Dia Internacional da Língua Materna passou a ser, também, o Dia Internacional da Língua dos Pássaros, língua perfeita para transmitir verdades incomunicáveis. Língua secreta e filosofal, alfabeto divino de onde derivam todas as línguas maternas. Penso que o Menino partilhava desta linguagem, pois dois dias antes de partir, quando era ainda totalmente improvável o súbito acontecimento, escreveu no seu computador da escola: “As mimosas floridas são em Fevereiro. Crescer é bonito. Eu como, morro e cresço”.