Dos Pés, das Quedas, da Pegada, do Chão.


Aqui há tempos dei uma queda muito séria. Sei que para além das razões de ordem física, outras há sempre menos evidentes, pois o sistema de correspondências é uma das leis da relação entre o visível e o invisível. Por isso, sem demasiada preocupação ou insistência, tenho andado a pensar em que mensagem há para recolher da queda.

Tudo o que acontece no caminho é uma espécie de mapa de conhecimento do “eu” para quem não ande adormecido.
Diz Lise Bourbeau: “Como os pés representam a nossa maneira de avançar na vida, os dedos dos pés representam a nossa perceção dos pormenores desse avanço.”

O diálogo com o corpo que se faz ao longo do caminho, momento em que o nosso habitáculo se revela mais eloquente do que nunca (os peregrinos queixam-se de dores musculares nas pernas, tornozelos inchados, dedos feridos, solas dos pés com bolhas, quedas, arranhões, etc), sinais e linguagem não faltam, esse diálogo, dizia, é uma preciosa conversa quase ao modo dos gregos, conversando e andando.

De que lado estão minhas dores? Do lado do coração ou da razão? Que dedo me dói, o que segue ou o que aponta? Como está a minha pele? Doce? Escamosa? Como se faz o meu contacto com os outros? É íntimo? Caloroso? Distante? Como reajo ao cansaço? Cuido-me? Abuso-me? Como lido com o meu limite? Conheço-o? Respeito-o? Ignoro-o? Transgrido-o?

O caminho, qualquer caminho, a vida enquanto caminho, coloca-nos em contacto com o desconhecido. Ainda que o tenhamos percorrido mil vezes, é sempre o desconhecido que percorremos. Às vezes olhamos a paisagem que tão bem conhecemos, as casas e as árvores e tudo ao nosso redor e não percebemos onde estamos, ainda que saibamos que não pisamos terreno desconhecido, embora o pareça. O desconhecido pode trazer algum medo, o que é natural e humano, mas é também necessário.

É fundamental despertar para a consciência da importância dos pés na Vida quando vivida em ponto grande, e na Arte, pois juntando ambas estamos mais próximos da alegria, uma forma de viver a saúde.

A tríade pés, terra e respiração pode conduzir-nos a um sentimento de mistério e com este de sagrado, que transcende as religiões, mas nos aproxima de algo grande onde o ar abunda, onde a respiração não é difícil.
Ao mesmo tempo que nos debruçamos pelo interior do nosso espaço individual, vale a pena encetar uma viagem pelo conhecimento do corpo na literatura universal de todos os tempos, num exercício de literatura e respiração, essa arte do corpo, em que os pés, esses nossos ilustres desconhecidos e distantes mestres, evocam os quatrocentos anos da Peregrinação, assim nos permitindo fazer uma viagem aos pés da língua e da literatura portuguesas. Com olhos de ler, encontraremos Fernão Mendes Pinto e outros autores e textos literários onde os pés são protagonistas, assunto, ou simples e anónimos figurantes. O corpo com seus pés passeia-se pela literatura portuguesa e pela literatura de viagem, no sentido convencional ou numa dimensão psicológica e interior.

Muito se fala hoje em pegada. Os pés deixam no chão, para além da pegada visível, uma outra mais subtil que pode ser poética ou um borrão. É um exercício interessante tentar adivinhar, pela observação do chão que percorremos, que pensamentos por ali passaram antes. Isto conduz, necessariamente, a uma atenção outra que é ao pensar e ao sentir que ali estamos nós mesmos a carimbar.

Às vezes, é preciso cair. A única forma de sentir o chão. Um bom tempo para isso é o Verão, com sua areia quente, sua terra seca, sua água fresca, sua erva a caminho do feno. As crianças gostam de se atirar para o chão. Os adultos ralham, um ralhar de amor ou de temor que é necessário compreender. Mas as crianças precisam de continuar a poder atirar-se para o chão. Para que mais tarde não caiam. Se não tiverem podido fazê-lo em crianças, convém que o façam depois de grandes. Convém que caiam! E que fiquem, e que chorem. E que se levantem.

Risoleta Pinto Pedro