A Aprendizagem das Lágrimas


Ela encontrava-se numa casa de banho, mas estava a ser vista, ou por alguma razão não podia usar aquela casa de banho, ou por não ser, na verdade, uma casa de banho, variavam as razões para o impedimento de ali urinar. Mas a pressão era enorme e ela não estava a conseguir conter-se. O facto de tentar controlar, causava-lhe uma enorme dor, o facto de não o conseguir, provocava-lhe um assustador medo. O medo e a dor confundiam-se numa mesma emoção.

Não sabia se doía mais o medo, se receava mais a dor. Era insuportavelmente infernal. E sem conseguir conter-se, libertava o líquido numa mistura de medo e dor. Depois acordava, com alívio, por ser só um pesadelo. Às vezes tinha de ir logo a seguir a correr para a sua casa de banho, porque não estava, realmente, a conseguir reter.

O acto de urinar, se na vigília já não vinha acompanhado fisicamente pela dor, era acompanhado pela memória desta e do medo, bem real. O sonho era recorrente. Até que um dia percebeu, no meio de uma infeccção urinária, que tinha tido uma versão deste recorrente sonho, uma semana antes, aproximadamente, de o mal-estar se manifestar. O sonho era um aviso, um símbolo, um mapa do tempo e das suas emoções. Começou então a lembrar todas as ocasiões em que se repetira o sonho, e embora nem todas as vezes se lhe tivesse seguido a manifestação de uma infecção, teria sido sempre, sem dúvida, o aviso de que estava a reter emoções. Que não estava a deixá-las sair sob a forma de lágrimas, assim a bexiga avisando ou ameaçando, apesar de tudo o mais benevolamente que conseguia, que teria de libertar o que os olhos conseguiam conter.

Foi então à procura de literatura sobre o assunto e confirmou que as lágrimas que por demasiado tempo se retêm, são a causa de excesso de micção ou de doenças do trato das humidades. E que a bexiga, a que suporta, dentro de limites, os líquidos que o corpo precisa de expulsar, quando esses líquidos se acrescentam mais do que o normal sob a forma de lágrimas internas, não vertidas, começa a gritar, através da infecção, com dor, ardor e por vezes sangue, para nos avisar que estamos inflamados de excesso de contenção.

Contou-me isto no meio de uma confidência e disse que podia usá-lo na escrita, se pudesse ajudar outras pessoas. E que estava a aprender a deixar-se desmoronar, por vezes, para depois se reconstruir.

Enquanto não o conseguisse, teria de suportar, de vez em quando, o ardor, esse ar de dor, quando não mesmo a dor sem ar, asfixiada, instalada, que ultrapassava o espaço da bexiga e lhe trespassava os ossos até à ponta de todos os dedos do corpo, como se quisesse, assim, fugir do medo.

Continuou a narrativa, recuando no mapa do tempo até uma sala de aula dos seis anos. Por ter escrito no caderno de outra menina, a pedido dela, algo que não deveria, fora castigada, através da mudança para a sala dos “grandes” onde ficara em pé, à frente de todos. Era psicologicamente rija, não quis chorar, mas a pequenina bexiga, no meio da solidão do corpo, mergulhada no isolamento aquático, não aguentou. E ali de pé, num sítio onde estava a ser vista, que não era uma casa de banho e onde era absolutamente interdito fazer xixi, as lágrimas inferiores soltaram-se docemente e percorreram as doces cascatas dos joelhos depositando-se aos seus pés em forma líquida.

Tem continuado pela vida a repetir este padrão de retenção das lágrimas, mulher guerreira de secas faces. E a companheira, lá em baixo, cansada, desesperada por tanta obstinação, começou, ao fim de umas décadas, a tentar avisá-la nos sonhos e depois gritando sob a forma de ardor, seguindo-se o ar de dor e finalmente, inequívoca, a dor. Companhias do medo.

Risoleta Pinto Pedro