As guerras, as doenças e as catástrofes naturais com as suas mortes em série e em massa acrescentando a exibição pelos écrans do mundo, banalizaram a morte.
Penso que essa é uma das maiores tragédias dos nossos dias, pois a partida de um ser, de qualquer ser, seja ele humano ou animal, é equivalente à morte de uma estrela. Talvez a morte de um malmequer também o seja. O nascimento dos mesmos é igualmente um acontecimento cósmico, mas esse temos a oportunidade, ao longo da sua vida, de o reverenciar. Talvez não o façamos, mas temos a possibilidade de o fazer.
Já a morte retira totalmente do nosso convívio aquele que partiu, pelo que essa ante partida é a tal ponto majestosa e solene, cósmica e universal, grandiosa e cerimonial, única e ritual, que não sei como não ficamos de joelhos perante tal evento.
Mas o ser humano é tão frágil, tão pouco persistente na reverência, que Joseph Roth, o grande Moses Joseph Roth, escritor de origem judaica e de expressão alemã, nascido em Brody (na altura Império Austro-Húngaro, hoje Ucrânia) que teve a sua última respiração em Paris, no Maio de 1939 (a II Guerra Mundial iniciar-se-ia uns meses depois), escreveu em Judeus Errantes:
«Quando ocorre uma catástrofe, o abalo leva as pessoas em volta a serem prestáveis. É este o efeito das catástrofes agudas. É como se as pessoas soubessem que elas duram pouco tempo.
Mas os vizinhos toleram tão pouco as catástrofes crónicas que, lentamente, estas e as suas vítimas se tornam para eles indiferentes se não mesmo desagradáveis. O sentido da ordem, da regra e da lei está de tal maneira enraizado nas pessoas que estas se dispõem apenas a dedicar um curto período de tempo à excepção que foge à lei, à confusão, ao delírio e à loucura. Mas se o delírio dura muito tempo, os braços da ajuda enfraquecem, o fogo da misericórdia apaga-se. Habitua-se à sua própria infelicidade, por que razão não à infelicidade do próximo, em especial à infelicidade dos judeus?»
Neste caso, refere-se, claramente à situação dos judeus ashkenazi, ou judeus orientais, como lhes chama. Mas podemos aplicar o mesmo raciocínio aos povos africanos, nomeadamente à tragédia recente em Moçambique, concretamente em Cabo Delgado, que inicialmente gerou ondas de solidariedade e que não desapareceu, apenas foi… esquecida. Como é o caso dos ucranianos ou dos palestinianos, que embora não tenham a sua situação resolvida, desencadeiam em nós, pela impotência, uma espécie de alheamento ou desistência, não esquecendo os judeus que por esse mundo fora recomeçam a ser perseguidos por razões pelas quais não são responsáveis. Para já não falar das vítimas do massacre de 7 de Outubro.
Neste livro acima mencionado e citado, Roth faz uma comovente crónica dos judeus orientais, sem facciosismo, com muita sensibilidade e complexidade. Não tendo assistido ao rebentar da II Guerra, assistiu e viu o suficiente dos “preparativos” para isso lhe ser insuportável. Vai apoiar-se na escrita, como fazem tantos criadores, para suportar o mundo, e no álcool:
«Já não me entendo com o mundo… Penso que compreendo o mundo somente quando escrevo, e quando deixo de escrever sinto-me perdido. Provavelmente o álcool não é a causa, mas sim a consequência, o que aliás piora a situação.»
Também o corpo de Joseph Roth não suportou o embate continuado com a agressão que, juntamente com a escrita, o ajudou, durante algum tempo, a sobreviver ao horror. E partiu. Deixando, como escritor, um dos mais extraordinários legados do século XX.
Somos todos judeus errantes. Nesta viagem errática que é a vida, por vezes temos impulsos altruístas e heróicos que não podem durar sempre. São necessários, mas é bom manter um nível sereno de compaixão que possamos ir administrando quotidianamente. O próprio Roth explica, noutra passagem, este fenómeno tão humano:
«Uma vez no caminho da honestidade, nada me poderia deter. Fiquei embriagado de decência e sentimentos nobres, tal como antes me embriagara de maldade. Mais tarde, viria a descobrir que estes tipos de embriaguez não podem perdurar. É impossível permanecermos embriagados de decência e sentimentos nobres. A virtude está sempre sóbria.»
Convém que nos conheçamos. A escrita é uma forma de o fazer: «Penso que compreendo o mundo somente quando escrevo, e quando deixo de escrever sinto-me perdido». Palavras de Joseph Roth, que comungo. Mas existem muitas outras formas, a vida é pródiga em criatividade.
Cabe a cada um descobrir qual é a sua maneira de compreender o mundo, que é o mesmo que compreender-se a si mesmo.
Risoleta Pinto Pedro