Los universales del sentimento
A nossa vida é como um músculo com a força suficiente para contrair todo o tempo histórico. Ou dito de outro modo: o autêntico conceito de tempo histórico baseia-se integralmente na imagem da redenção.
Walter Benjamim
[Por sugestão da professora Deolinda Fernandes, publica-se este mês nesta rubrica, um texto prefacial de “O Livro da Vida das Crianças Mortas” incluído no livro Painéis Solares, assinado pela mesma autora dos textos deste blogue, Risoleta C. Pinto Pedro, e que foi apresentado no passado mês de Setembro na ESMTC.]
Este livro não é, claramente, romance, nem novela, nem conto, nem canto, digo, poema. Nem biografia, nem ensaio. Mas é, difusamente, um ensaio biográfico de cariz épico-poético. Não cabe, entre estas páginas, a minha pequena história individual. Não existe aqui vestígio algum de solipsismo. Nem na sua estrutura encontro o rigor ensaístico. Mas do que é história em mim, pus nestes termos o que pode tocar todos e cada um. Do ensaio, aqui se encontra apenas a ideia a defender, a demonstrar. Sem força. Pela adoração, que é redentora.
Sei, por dentro, a que se refere Gidon Kremer, maestro e violinista nascido em Riga, de origem judaico-alemã, em relação aos músicos e aos sons, e adapto o que disse, ao meu ofício: que os escritores deveriam aprender a ligar as letras ao seu mundo interior. Não foi o que tentei fazer, foi o que se me impôs antes de o pensar enquanto tal, foi do que resultou este livro. Um imperativo que me transcendeu, um misterioso entusiasmo que tomou conta de mim e me venceu a vontade.
António Machado afirma, a propósito da saudade, que o poeta deve sorprender algunas palabras de un íntimo diálogo, distinguindo la voz viva de los ecos inertes; que puede también, mirando hacia dentro, vislumbrar las ideas cordiales, los universales del sentimiento. Por isso, Byung-Chul Han afirma ser a era pós-narrativa um tempo sem interioridade, que não permite a proustiana memória involuntária.
O que encontramos neste livro (nestes livros?) é uma filha a contar à mãe as histórias de ambas, e uma mãe a conversar com os filhos que não chegou a ver nascer, e a narrar-lhes histórias e a recitar-lhes versos sobre os nomes que lhes pôs. Mesmo quando parecem aflorar aspectos biográficos, é sempre pelo lado do interior. Quem assistiu por fora aos acontecimentos, talvez não os reconheça.
Há um juntar de momentos aparentemente diferentes, passados em distintos tempos, eliminando o transcorrer de Cronos, criando enlace e urdindo inéditas teias, salvando-os da contingência.
O facto de se tratar de uma narrativa, não implica que tenha de conter sucessões de acontecimentos. Tom Hanks afirma, em relação às curtas-metragens de Wenders, feitas ainda durante a frequência do Conservatório, que era libertador que não acontecesse nada. Entretanto, muito ia acontecendo dentro de quem se encontrava a visualizá-las. Os acontecimentos externos podem ser impeditivos do acontecimento interior.
Ideia semelhante encontramos expressa por Wenders, no documentário abaixo referido:
O que nos move? É uma pergunta íntima que pede uma resposta íntima. É quando respondemos pessoalmente, que se torna relevante. Se respondemos muito teoricamente ninguém se interessa. Se dermos uma resposta muito pessoal também ninguém se interessa. Mas quando se olha para isso por experiência própria e estamos preparados para partilhar esta experiência e para lidar com a experiência até ao extremo… acaba por ser algo que diz respeito a toda a gente, de uma maneira ou outra.
Aquilo que Machado designa como los universales del sentimiento. É aí que nos situamos com este livro. Só depois da sua leitura foi possível compreendê-lo.
A expressão é luz ou vibração do espírito, transporte de um eco inatingível e ao mesmo tempo de uma proximidade surpreendente.
A relação entre o passado e a saudade pode, mais do que cristalizar o passado, superar o tempo linear. Numa parte do livro traz-se o passado para o presente dando nome às crianças e atribuindo-se-lhes uma narrativa. Como no diálogo de uma filha com uma mãe esquecida das palavras, se traz igualmente o passado para o presente resgatando as palavras esquecidas e actualizando-as em narrativas.
Não existe a pretensão de grandes análises ou interpretações psicológicas como na novela dos inícios da Modernidade. Sem vaidade, encontra-se, nestas páginas, algo que poderíamos aproximar da narrativa épica, o que Walter Benjamin designa como o extraordinário, o prodigioso, sem, contudo, se pretender transmitir ao leitor o contexto psicológico da trama. Sendo eu suspeita, não posso, no entanto, deixar de reconhecer que aqui vemos o que o coreano Byung-Chul Han designa como uma narração que vai buscar à experiência, própria ou alheia, o que conta, criando a possibilidade de a sua narrativa passar a ser a experiência de quem escuta a sua história. Neste caso, a demora contemplativa é comum a quem narra e a quem recebe.
E como narrativa que não se limita a meros dados, não é aditiva, mas permite-se, permito-me: esquecer, omitir, inventar, imaginar, moldar, deformar, conformar, deturpar, exagerar. Não há transparência nem linearidade, mas um cenário de Escher em que não se sabe aonde levam as escadas, pois em si mesmos os degraus se recolhem. Há uma coordenação que une as coisas, que as despe do fato do facto, e que as envolve com um velo tecido em torno das coisas, pois o encobrimento, afirma Byung-Chul Han, é essencial para a narração. Acrescenta que a informação, enquanto tal, é pornográfica, pois carece de envoltura […], a pornografia não conta nada. Vai direita ao assunto. Já a narração espraia-se em minudências.
Articula, pelo ritmo do contar, acontecimentos que assim se aprofundam na irmandade. Para Peter Handke, é uma forma de transformarmos o mundo assustador na nossa casa. Vê este proceder, aparentemente divino, como uma necessidade existencial. Visões que, na minha opinião, não se excluem.
Num tempo em que impera, por todo o lado, o storytelling, vai-se perdendo a narração. Lembra o autor acima mencionado, que já nem aos médicos se conta nada. Não têm tempo nem paciência para a escuta. A lógica da eficiência é incompatível com o espírito narrador. Só na psicoterapia e na psicanálise ainda se encontram reminiscências da força curativa da narração. A autora do livro Mulheres que Correm com os Lobos mostra, também, como as histórias tradicionais contadas a mulheres com traumas podem ser profundamente curadoras.
Nestes dois textos, juntam-se histórias ao correr da pena, da lembrança e da imaginação, num exercício não intencional, mas efectivo, em que a criação assume, se não uma função de cura, pelo menos de refrigério. Como um bálsamo que vai penetrando nos poros e permitindo alterações no interior, que é sempre onde as alterações têm início.
À medida que vou contando, vou ouvindo as histórias que do outro lado do livro, onde se encontra o leitor, por sua vez vão sendo contadas. Ouço-as com os suspiros, os soluços, os gemidos, os lamentos, os choros. Talvez seja eu a única a ouvir os “ais” de quem os solta sem saber que o faz. Se não existissem estes nossos “ais”, talvez o presente livro nunca tivesse sido escrito. Eles criaram tal rede de ressonância quase material, que algo tinha de assumir uma forma física que os libertasse. Não narro uma história pessoal, conto uma crónica comum, com mães e filhos, com filhas e mães. Ou pais. Faço-o em contemplação, para melhor sentir a comunidade que somos. Criei um cenário, histórias, personagens, para que cada um possa entrar no palco e produzir as suas cenas e dizer as suas falas e gerar a sua catarse, essa sim, pessoal. Intransferível. Todos entram nesta peça comunitária e universal onde cada um é o único espectador, porque apenas um teve um bebé morto nos braços, apenas uma acompanhou o milagre da formação. Todas as outras histórias são um único anal. O vínculo é criado pela tragédia colectiva que se eleva acima da narrativa privada, e é estreitado pela compaixão de todos por todos, que não rejeita ninguém, que abre portas, inicia novas narrativas e só assim pode criar futuros num plural aberto…
Quando me encontrava na finalização deste livro, sem saber exactamente como deveria lê-lo, tive dois encontros fundamentais: a leitura de um livro, A crise da Narração, e o visionamento de um documentário, Story of His Early Years. Ambos, autores e obras acima citados, Byung-Chul Han e Wim Wenders mostraram conhecer-me melhor do que eu a mim mesma, e a eles se foram seguindo outros flashes: Gidon Kremer, Walter Benjamim, António Machado, Roberto Juarroz, Edmond Jabès, surgiram como reaparições de um espectáculo misteriosamente concebido à margem da minha consciência, e tudo se mostrou a uma nova claridade, como iluminado pela força de um painel solar poderoso, ainda que invisível.
Esta Reflexão é uma chispa dessa cintilação. Mas há que não esquecer a importância de livros como Mistérios do Alfabeto, de Marc-Alain Ouakin, e O Simbolismo do Corpo Humano, de Annick de Souzenelle. Por último, mas não em último lugar, a absolutamente iluminante Gramática Secreta da Língua Portuguesa, de António Telmo. Por detrás de tudo, o mais absoluto mestre: a Vida no seu esplendoroso acontecer.
Risoleta Pinto Pedro