No último parágrafo de “A Primeira Figura do Tarot”, in O Bateleur, de António Telmo, podemos ler, em citação de um livro de Thereza de Melo: «Também Prometeu procurou roubar o fogo divino com um ramo oco de funcho (a vara que o Mago ostenta na carta?). A este deus mediador se atribui o cômputo do tempo, a invenção do alfabeto e dos números, a medicina e a previsão do futuro».
Continua a citação, por isso saltemos um pouco à frente: «O caduceu, a vara de Thot, e o ramo de funcho de Prometeu simbolizam a vara do Mago, domínio da magia e a palavra, sinal de vontade. Esta personagem é sempre rodeada pela ambiguidade do real e do ilusório, da verdade e da mentira, do saber e da astúcia.[…]».
Ora muito está aqui em causa nestes poucos parágrafos que Telmo transcreve e que tanto falam de nós. Já lá iremos. Antes, apoiemo-nos nas palavras, estas sim, de António Telmo, sempre sensatas, sempre sábias, mesmo no rasgo: «Compreendi, ao ler este texto, que o antiquário me sugeria a imitação do deus. De leitor do conto eu passaria a actor. A ideia não me agradou porque punha em perigo a minha inteligência. Os manicómios estão cheios de desgraçados que passeiam pelos corredores as sombras de Napoleão ou de Cristo. A vida dos homens que seguem, neste mundo, a atracção do espírito apareceu-me, de repente, como um manicómio. Sempre amei as manhãs lúcidas de Verão. Compreender ou não compreender essa é que é a questão. A outra, a de Hamlet, acaba sempre em tragédia.»
O que sobretudo me interessa nestas passagens que acabo de transcrever, é o funcho e o seu atraente perfume e é a questão do ser e do compreender que está presente nas palavras de Telmo.
O funcho é uma das sedutoras companhias que me acompanham desde a infância. Encontrava-o nos campos e dentro das garrafas de anis.
Ainda hoje me encanta o seu perfume, que associo também ao anis estrelado e à erva doce. São uma tríade que bem poderia representar as prendas trazidas pelos Magos, se eu fosse o Menino. Para além de que o meu corpo gosta e sente-se bem (neste caso é a alma) quando lhe acrescento estes sabores e perfumes. O mago a que se alude no texto de Telmo não é como aqueles que foram de Oriente para Oriente, do Sol para o Sol, da luz para a gruta onde nascia um novo sol. Logo, dois sóis, a acrescentar às duas luas que um menino que me acompanha acha que iluminam a noite: a lua que se vê na minha rua e a que se vê na rua dele.
Assim, faz sentido que para além do sol que já se conhecia, os Magos tivessem querido conhecer o sol novo, do Natal. Acontece que este sol não nasceu da manipulação dos magos, mas da necessidade do planeta. Ao contrário do que aconteceu comigo, num dia em que, ainda pequena, me apanhei momentaneamente com uma garrafa de anis e só parei quando os sóis não cessavam de se multiplicar e o chão estava em vias de desaparecimento.
Nesse dia aprendi o primeiro princípio da alquimia: o do equilíbrio, o do quanto baste, o q.b. que as cozinheiras tão bem conhecem. Aprendi, também, que o princípio de poder e deslumbramento que senti ao primeiro golo rapidamente se transformou em vertigens e perda de controlo. O sabor deu lugar à náusea e a alegria à vergonha. Uma calamitosa tragédia. Penso que alguns que se julgam poderosos podem compreender o que acabo de descrever.
A aprendiz de feiticeira deu-se mal com o elixir, porque não soube parar.
É isso mesmo que se passa com os que se encontram no poder. É que mesmo não segurando literalmente a vara de Hermes, chega sempre o momento em que percebem que o ramo do funcho perfumado é oco e conduz a um labirinto que por muito perfumado que seja, não tem saída.
Como têm de lidar com o real e o ilusório, a verdade e a mentira, o saber e a astúcia, muitas vezes pendem para um dos lados exclusivamente, e temos os que se orgulham do seu realismo, de deterem a verdade e o saber. São perigosos, criam impérios onde não existe lugar para outras realidades, outras verdades, outros saberes. São as perigosas ditaduras. Por seu lado, alguns sentam-se sobre o ilusório, a mentira e a astúcia querendo convencer toda a gente que estão na razão. Embora se declarem guardiões da democracia, são eles que a destroem a partir de dentro. Também não são gente muito recomendável.
Não é fácil viver num mundo onde o ponto de equilíbrio está num fio de navalha, e não há outro. Isto significa que quer o cidadão, quer o dirigente, estão frequentemente a inclinar-se para um ou para outro lado tentando manter-se na impossível linha do meio. Mas é bela, essa dança da procura da simetria. A simetria não é bela, mas a dança com sua estética do equilíbrio e desequilíbrio é admirável, enquanto, na procura da solidez, não pende para um ou para outro lado. Não é possível descansar nos extremos. A não ser quando se olham mutuamente e exactamente como são.
Por isso, no Diálogo de Platão entre Crátilo e Hermógenes, é Sócrates que, nas palavras de Telmo «surge no momento em que a oposição entre os dois parece irredutível. Ele vem como o terceiro, como aquele que tem um ponto de vista superior ao do primeiro e do segundo». Aqui não entendamos “superior” como arrogante, por isso, diz Telmo que Sócrates «não assume a atitude desdenhosa do iluminado Crátilo». Vai mostrar a Hermógenes que «a duplicidade […] uma vez assumida, pode levar á realização de uma natureza superior ou à degradação que conduz à subconscência animal». É neste ponto que estamos: entre os que se julgam iluminados (de qualquer tipo, intelectual, artístico, moral, espiritual…) e os que procuram arrastar-nos consigo para a mais rasa animalidade. Que nos resta? Apenas… o fio da navalha. Porque «uma coisa não é possível sem a outra. A verdadeira compreensão é sempre a relação do ser com o saber». Palavras de Telmo com que conclui o acima citado capítulo.