O Que Arte Cura


No princípio era o sangue.

“Há coisas que nós sabemos antes de as experimentar. É como se tivesse nascido para as saber! E é por isso que depois as compreende tão bem nos livros… quando as encontra. Mas eu também hei-de escrever um dia…”  José Régio, As Raízes do Futuro

Iniciamos esta rubrica no mês de maio. Estamos em plena Primavera, resplandecente de inícios, segundo a ciência astrológica e a observação da Natureza.

Curar é uma arte e a arte também cura.

Tive em tempos uma página a que dei este nome: O Que Arte Cura, por na altura mais do que uma ideia, um princípio e uma certeza, ser uma orientação que canalizava algumas das minhas práticas: um blogue, uma oficina de escrita, uma atividade terapêutica.

Depois percebi que não precisava de me dispersar, que a escrita, por estar a criação em contacto com o self, o verdadeiro Eu, bastaria por si. Assim, toda a ardência da arte se concentrou em si mesma, honrando a forma como em mim nasceu: a salvação de uma monumental morte de um filho pela escrita.

A arte não adia apenas a morte, mas confere a imortalidade, não no sentido material, de eternização do corpo ou da fama, sendo esta o que menos interessa e muitas vezes atrapalha, mas porque nos põe em comunicação com o nosso Eu que não morre, ou que morrendo um dia ressuscita, sendo essa parte já uma questão da crença de cada um.

Observando um especialista de Medicina Tradicional Chinesa (MTC) no seu trabalho muito próximo do sagrado, ao lado da entidade que é a técnica, o que aprendeu, a mecânica do funcionamento do corpo, algo mais há de indefinível, sendo uma parte também fruto da aprendizagem e outra algo dela decorrente, mas sempre em crescimento.

Vibra nele (ou nela) a inspiração que ilumina aos seus olhos o paciente que tem à sua frente como um ser único, uma ocasião única, um olhar profundo que vê mais longe e mais fundo do que a matéria. Aparece como um maestro dirigindo uma orquestra algo desafinada e dando-lhe indicações que a reconduzirão ao ritmo, à harmonia. À saúde, à alegria.

Tenho ouvido testemunhos e tenho visto isso acontecer ali, na consulta desta Escola. Assim, à minha modesta maneira me juntarei a este movimento, mas pela escrita, aqui partilhando mensalmente uma ou outra reflexão decorrente de leituras, observação, pensamentos e inspiração sobre esta misteriosa correspondência entre a saúde e a arte.

Não será esta uma rubrica didática ou cientificamente correta, porque eu não estaria à altura, mas de pura inspiração, em cuja aventura convido o leitor a entrar.

Inicio hoje com pequeníssimo apontamento sobre um livro que se iluminou à minha frente e cujo conteúdo posteriormente desenvolverei. Trata-se de um livro de Rudolf Steiner e tem por título El Significado Oculto de la Sangre (O significado oculto do sangue). Numa medicina em que a importância do sangue é tão valorizada, com conceitos como “vazio” e “estagnação”, sendo o sangue o sublime condutor de alimento, oxigénio, energia, vida e… toxinas, luz e escuridão, como não começar por aqui?

É uma abordagem simbólica, a que nos traz Steiner. Mas não é o símbolo que nos salva onde a matéria nos aprisiona? Já no Fausto, de Göethe, que no livro aparece como epigrafe, encontramos escrito: La sangre es un fluido muy especial.

Começo, ainda antes de entrar, por observar que na língua castelhana a palavra sangue é do género feminino, e só com isto já encheríamos muitas páginas. Mas não iremos por aí.

Para comentar a frase de Göethe, Steiner na conferência que dará origem ao seu texto, vai apoiar-se em mitos e lendas tradicionais que considera a expressão de uma profunda sabedoria que nos vem dos antigos. O que denomina como a «ciência espiritual». Ora não é uma ciência espiritual que ilumina e de alguma forma explica o sucesso das terapêuticas aplicadas na MTC?

No Prólogo, Juli Peradejordi, recorda, do Levítico, a afirmação El alma está en la sangre.

De tudo isto, o que ressalta é que o sangue é muito mais do que aquilo que tem sido considerado do ponto de vista químico, porque o elemento alquímico lhe é atávico. E como muito bem é dito em texto atribuído a Hermes Trimegisto: se queres conhecer o invisível, abre bem os teus olhos para o que vês.

Daqui se depreende, pelo menos deste ponto de vista, que nada há de mais espiritual do que a matéria, esse meio de transporte para o invisível. Nesta ordem de ideias, também o corpo com seu sangue é um meio de transporte, a sagrada tinta com que Deus escreve por dentro de nós.

As crianças sabem isso. Quando fazem uma ferida no joelho, absorvem o sangue com a seriedade e convicção de quem comunga, e desde tempos imemoriais muitos laços foram selados com mistura de sangues. As crianças de muitas gerações, não sei se ainda hoje o fazem, também foram marcando amizades que na altura eram eternas, com gotas de sangue dos dedos que picavam.

Nas histórias tradicionais, a picada de um fuso podia pôr, ainda que provisoriamente, fim à vida. Nos rituais satânicos é bebido sangue, e no ritual cristão bebe-se o seu símbolo. Tal como a poesia, segundo a poeta Natália Correia, é para comer, o símbolo, ou o néctar da poesia, é para beber.

É longa a história do sangue, tão longa quanto o caudal desse misterioso rio que corre desde sempre pelo interior dos nossos corpos. Todos os meses, num ciclo lunar, as mulheres assistem à saída do seu sangue como um rio que brota delas como fonte, como música que sai de um piano.

É precisamente disso que falaremos na próxima crónica: do piano que hoje chegou à Escola.

Viva! Bem-vindo! Porque afinal… O que arte cura!

Risoleta Pinto Pedro